segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Debaixo do nosso nariz, patrimônio intelectual sob risco


Desde a expulsão dos jesuítas, os livros e a instrução existem na Bahia contra tudo: Portugal proibia o invento de Gutemberg na colônia; e, se tínhamos Vieira e Gregório de Mattos ao mesmo tempo, um enviava seus escritos para Portugal, e do outro restaram códices, como se fosse autor antigo ou medieval. Nem o boom de imigração que fez tanta diferença nos interiores do sul e sudeste do país viriam a nos ajudar: nossa imigração foi pífia, e o trabalho no interior da Bahia pós-Abolição seria regido pelos modelos medievais da terça, meação, dia de trabalho gratuito e pagamento em comida. Que de apenas uma classe média urbana e uns filhos de coronéis desinteressados de negócios surgisse uma vida intelectual pujante, é que é de admirar.

Ainda assim, é mais fácil encontrar na história da Bahia episódios de destruição de livros do que de produção. Seja quando a briga entre dois professores universitários (Ruy Barbosa e J.J. Seabra) pelo governo do estado resultou em um bombardeio que destruiu a única biblioteca pública da cidade, seja através da queima de livros e destruição de editoras, mesmo. Sobre estas, veja-se na História da Bahia o capítulo XXIV para a queima pública dos livros de Jorge Amado e o banimento dos de Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Gilberto Freyre.

Exceção a tudo isso foi Luís  Viana Filho, ele próprio professor de Direito e História. Cito História da Bahia, 10ª ed., de Luís Henrique Dias Tavares, p. 484-5. O grifo é meu:

"Uma preocupação especial do governador Luís Viana Filho foi dotar a Bahia de uma biblioteca pública em condições de atender o povo baiano. Para que ela existisse, desapropriou uma área no bairro dos Barris e abriu concurso nacional para premiar o melhor projeto arquitetônico. Outra preocupação foi a de criar condições para a existência de pelo menos uma editora comercial na Bahia. Não conseguindo atrair a José Olympio, do Rio de Janeiro, a qual consultou sobre a possibilidade de instalar uma sucursal na Bahia, o governador Luís Viana Filho assinou convênios com as editoras baianas Progresso e Itapuã para edições de livros pelo sistema de compra de exemplares à semelhança do procedimento do Instituto Nacional do Livro. Assim, foram reeditados, pela Editora Itapuã, clássicos da importância das cartas de Luís dos Santos Vilhena, A Bahia do século XVIII, com notas e comentários do historiador Brás do Amaral e do antropólogo Edison de Souza Carneiro, e Povoamento da cidade do Salvador, clássico da autoria do mestre da antropologia baiana, Thales de Azevedo."

Como falei antes, os livros da Progresso não estão todos na Biblioteca Nacional, porque há muito mais títulos seus na Estante Virtual que no catálogo. Sabem o que isso quer dizer? Que, se certos exemplares da Bahia se perderem, perdem-se obras de gente como Theodoro Sampaio e Thales de Azevedo!!

-- Ah, mas e o saite do Domínio Público?

Vou usar Theodoro Sampaio, que é domínio público, como exemplo, tá?

Eis o resultado da busca de Theodoro Sampaio:
Procurei sem H também, e o resultado foi o mesmo. 

Pra ter uma ideia, em Casa Grande & Senzala, aparecem nas referências as seguintes obras dele:
 "São Paulo no tempo de Anchieta", in III Centenário do Venerável Joseph de Anchieta, S. Paulo, 1900.
O Tupi na Geografia Nacional, 3ª ed., Bahia, 1928.
O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina, Bahia, 1938.

Na História da Bahia, aparecem:
História da fundação da cidade do Salvador. Salvador: Tipografia Beneditina, 1949. (Póstumo)
O estado da Bahia. Salvador: s.n., 1923.

Seria difícil catalogar as obras completas de Theodoro; seu Tupi parece ser dos menos difíceis de encontrar. Na Wiki, achei este saite com algumas obras dele digitalizadas pelo Google. Os volumes são da biblioteca da Universidade de Stanford. Quanto a edições não-esgotadas de qualquer livro dele, parece haver apenas esta.

Agora, e se bombardeios porventura abatessem bibliotecas baianas de novo? E se as traças e a umidade da cidade danificarem os exemplares? Será que a BN nos salva? Resposta:

Bem, quem sabe a Biblioteca de Stanford não nos salvaria. Do contrário, as gerações futuras bem poderão editar Theodoro -- e sabe-se lá quantos outros -- à maneira dos pré-socráticos, com fragmentos. Nós até podemos maldizer os que incendiaram Alexandria. Já eles...

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