sábado, 17 de dezembro de 2016

Tradução de filosofia na Bahia

Este ano publiquei pela Edufba uma tradução dos Diálogos sobre a religião natural, de Hume, e atinei que eu bem posso ser a primeira pessoa a publicar na Bahia a tradução integral de um clássico da filosofia. Disse isso no Facebook, e as reações foram variadas: desde os entusiasmados parabéns até reprimendas inbox, pelo "elogio em boca própria" sem nem ser a primeira tradutora baiana. (Eu nunca disse ser a primeira baiana, mas sim a primeira a publicar na Bahia. E se eu digo que sou a primeira, isso é afirmar um fato; elogiar seria dizer que sou a melhor ou a mais bonita. Mais ainda, deveria ser do interesse dos baianos letrados mapear a história da tradução na Bahia, e é pequenez pôr acima do conhecimento da nossa história a preocupação com tolher jovens.) Além disso, recebi informações, e não quero que elas se percam na celeridade do Facebook.

Passemos às probabilidades de a minha ser a primeira tradução integral de clássico da filosofia editada aqui. Não há nenhuma outra tradução de filosofia na Edufba, nem há tradução alguma na editora baiana em que professores do departamento de Filosofia da UFBa costumam publicar, a Quarteto.

Pra recuar no tempo, peguei as referências bibliográficas do enciclopédico Luís Henrique Dias Tavares na História da Bahia para encontrar os nomes das editoras de Salvador. Destacaram-se os selos Livraria Progresso e Itapuã. No próprio Luís Henrique, vi que o florescimento dessas editoras foi iniciativa de Luís Viana Filho -- depois vou postar sobre isso. Quanto à Livraria Progresso, há montes de exemplares à venda na Estante Virtual. Da Itapuã, quase nada. No catálogo da Estante há muita História, Sociais, antologias de Gregório de Mattos, Castro Alves e Ruy Barbosa, coisas sobre Grécia e Roma (por César Zama, um político inimigo de Ruy), literatura local e francesa (esp. Victor Hugo). Encontrei um livro de filosofia na Progresso: O Capital, de Marx, supostamente condensado por Gabriel Deville. Denise Bottmann, em seu Não Gosto de Plágio, já contou esse insólito caso da bibliografia secundária que passou por primária no mundo lusófono. O Capital, de Marx, fora confundido com O Capital de Marx, de Gabriel Deville!

Sobre as principais editoras baianas, quero deixar registrado que o catálogo delas está incompleto na Biblioteca Nacional, e até com um provável erro (a saber, o de A paixão de Abelardo e Heloísa ser creditado a Abelardo, quando na Estante o livro é universalmente dado por romance francês da autoria de certo Lamartine). Compare-se o catálogo da Progresso na Estante ao da BN. E isso é grave, porque quer dizer que muitas obras de intelectuais importantes da Bahia podem se perder!

Antes dessas editoras, havia certas Typographias do fim do XIX e do começo do XX. Alguns nomes são "Beneditina", cujos autores eram em geral monsenhores, a Tourinho (achei até um livro escaneado na Wikisource) e a Social. Delas, não há catálogo. Agora, acho muito improvável que, sem faculdade de filosofia nem público leitor, alguém tivesse se dado ao trabalho de traduzir uma obra que a meia dúzia eruditos baianos podia ler no original.

Mas não volto mais no tempo. Comecei pensando que, lá na colônia, seria vão, pois os jesuítas publicavam tudo em latim... Mas vejo que até o que publicavam era necessariamente fora daqui: Portugal, hipercentralista que era, proibiu a imprensa no Brasil! Com o alto analfabetismo, não é de admirar que infratores não se encorajassem. A tipografia só veio com a Corte, em 1808, e aí o que surgiu com toda a força foram os jornais. Nessa época, em 1814, foi impressa no Rio uma tradução de Aristóteles para o português, feita pelo Prof. Silvestre Pinheiro, que acompanhou a Corte, como me mostrou Giorlando Lima.

Por fim, noto que a geração que está com uns 40 a 60 no Departamento da UFBa é a primeira com formação propriamente em filosofia, a qual foi possível graças ao pioneiro departamento de filosofia da USP. Antes deles, havia a figura do intelectual multitarefa, e filosofia é aquela disciplina que todo advogado ou cientista social deve conhecer. Portanto, se não houve nenhuma tradição de filosofia na Bahia análoga à de história, direito ou sociais, explica-se a demora. Agora, por que teve disso tudo, mas de filosofia não teve, não sei.

Além disso, algo que na certa ajudar muito a explicar como uma cidade fundada em 1549 (data anterior ao hábito de traduzir para o vernáculo) parece ter chegado a 2015 sem uma tradução de clássico de filosofia é a falta de público leitor. Mesmo que despontasse um estudioso ou outro, não havia uma massa letrada o suficiente para comprar livros de filosofia, mas que não fosse letrada demais para desprezar traduções e preferir ir ao original. A falta de público leitor prejudicou os brasileiros até no mínimo a década de 70, pois mesmo a celebrada Pensadores de capa azul não se preocupa em avisar quando os textos não são integrais. Um exemplo claro é o volume Berkeley/Hume, que tem listado entre os títulos os Ensaios morais, políticos e literários, mas onde consta cerca de metade dos ensaios.

Outra coisa que ajuda a explicar é o centralismo que herdamos de Portugal e mantivemos enquanto Brasil. Quer publicar livros? Que vá para São Paulo ou Rio. Tanto é que, pensando em baianos e tradução de filosofia, há na ponta da língua Paulo César de Souza, com seus Nietzsches pela Companhia. No nosso departamento de hoje, há também João Carlos Salles, que traduziu e até editou as Anotações sobre as cores pela Unicamp. Pelo Prof. Mauro Castelo Branco de Moura, soube ainda que a façanha de traduzir por inteiro O Capital (verdadeiro) foi de um baiano, José Reginaldo Sant'Anna, pela José Olympio. E ele contou ainda que um professor antigo do departamento, Remy de Souza, tinha traduzido obra cartesiana.  Felizmente o professor tem Lattes, e pude identificar as obras. São a Monadologia  de Leibniz e Do espírito geométrico e da arte de persuadir, de Pascal. A referência desta última só pude encontrar neste compêndio de Paim, p. 157. Foi publicada em 1973 pela Beneditina e não está no sistema de bibliotecas da UFBa. Como tem somente 37 páginas, não pode ser integral. Já a Monadologia, consta no sistema:
Com tão poucas páginas, tampouco pode ser integral.

Ainda sobre tradução na Bahia, registremos a estadia do grande tradutor e filósofo português Agostinho da Silva, que fundou o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da UFBa. Ele deixou todas as traduções gratuitas, e estão disponíveis neste saite. Uma agradável surpresa que se provou enganadora foi a Bahia Colecção de Folhetos, onde se encontra uma tradução do Sonho de Cipião, que é um pedaço da República de Cícero. Lastimavelmente, Bahia era o nome da coleção, a qual era impressa em Lisboa mesmo. (Isto se vê na referência bibliográfica em nota na primeira página.)


E vocês, se acharem mais coisas de tradução de filosofia na Bahia, contam aqui nos comentários? Facebook não, que se perde!

3 comentários:

  1. lá no blog, no levantamento sobre o schopenhauer, há uma edição da progresso, mas que julgo ser reedição de uma tradução portuguesa, o que reforça seu ponto, aliás: Dores do mundo - A metafísica do amor, a morte, a arte, a moral, o homem e a sociedade. Coleção Temas do Nosso Tempo. Salvador, Livr. Progresso, 1957. 205p. Provavelmente retomando a mesma tradução portuguesa que avento como fonte para a edição da H. Antunes, de 1931. http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2015/06/schopenhauer-no-brasil-1887-1969.html

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    1. Obrigada!

      Nessa relação dá pra perceber um outro problema de que falei aqui: é impossível o catatau d'O mundo como vontade e representação ter apenas 230 páginas, como a da década de 40. No Ebooks Brasil, aparece o livro IV.

      É de notar que os livros de bolso em inglês e francês não venham com um aviso na capa de que se trata do texto integral. Pelo visto, nossos editores não tinham lá muito bom-senso, ou o público leitor não era dos mais exigentes, ou a falta de exigência desses e de bom-senso daqueles se alimentasse mutuamente.

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