sábado, 3 de janeiro de 2015

De re publica -- Cícero

***Post de aniversário de Cícero***

Olhando catálogos de livraria, poderíamos ficar contentes por encontrar edições novinhas em folha da República de Cícero: tem da Edipro e da Kiron à disposição, além de não dever ser difícil encontrar em sebos es edições da Ediouro, da Escala, da Tecnoprint e a da Pensadores (que está no mesmo volume que Lucrécio). Contudo, à improvável exceção da Kiron, que não pôs no catálogo o nome do tradutor, todas estas são da mesma tradução que certo Amador Cisneiros fizera para a extinta Athena Editôra, lá pela década de 30 ou 40. Não deixa de ser digna de nota, devido à história da editora -- que vale ser conhecida e que foi desenterrada aqui. (De antemão, digo que era uma editora esquerdista durante aquela outra ditadura mais velha, que também perseguiu o Barão de Itararé. Às vezes, as traduções eram feitas na cadeia e publicadas sob pseudônimo.)

Para quem queira estudar a República, porém, a versão é um problemão. Antes de entrar no texto propriamente, há o fato de as numerações que dividem os textos clássicos não serem arbitrárias ao editor ou tradutor: elas podem fazer muito pouco sentido porque provêm das páginas de algum pergaminho donde tenham sido copiadas, mas é essa a numeração usada para citar. Amador Cisneiros, ou a Athena, resolveu que a numeração seria de parágrafos, e assim instaura-se a confusão para quem queira cotejar. O tradutor resolveu também interferir no texto de modo que, quando houvesse uma falta do texto algo fragmentário, não parecesse havê-la.

Ademais, a versão traz consigo más notas explicativas. Por exemplo, no livro I, xv, explica-se que Panécio é personagem desconhecida, quando ele é mencionado em outros diálogos de Cícero (cf. pelo menos Ac. II, ii) e sabe-se por aí que era um filósofo estoico romano contemporâneo de Catão. Outro problema: Presumiu que o romano Philus fosse um grego Phílon, quando Phílon se verte para o latim como Philo (gen. Philonis). Philo em português vira Filão ou Fílon; como Marcus vira Marco, Lucius Lúcio e Titus Tito, Philus há de ser Filo. Mas virou Filão, com direito a uma notinha explicando tratar-se de um arquiteto grego! Ele confundiu Lúcio Fúrio Filo, cônsul, com o arquiteto Filão de Bizâncio coisa de cem anos mais velho! Para piorar, às vezes Cícero alude a Filo simplesmente como Lúcio Fúrio, de modo que pareça haver uma pessoa a mais no diálogo.

Além da versão de Cisneiros, pude encontrar:

(1) Esta referência portuguesa: "Cícero, Tratado da República. Tradução do Latim, introdução e notas de Francisco de Oliveira. Lisboa, Círculo de Leitores — Temas e Debates, 2008, 319 pp.; ISBN 978-989-644-011-4". Mas parece ser de circulação restrita, pois não figura em livrarias.
(2) Esta tradução do sonho de Cipião, que é quase todo o livro VI. O tradutor se chama Ricardo da Costa.
(3) Esta outra de Agostinho da Silva, também do Sonho de Cipião.
(4) Esta dissertação de filosofia que consiste na tradução comentada e anotada dos livros I a III. A tradutora se chama Isadora Prévide Bernardo.

Na cuidada edição da Calouste de obras de Cícero, não consta tradução da República.

Agora, trechos para cotejos:

(I, ii, 2)

A. CISNEIROS: Mas não é bastante ter uma arte qualquer sem praticá-la. Uma arte qualquer, pelo menos, mesmo quando não se pratique, pode ser considerada como ciência; mas a virtude afirma-se por completo na prática, e seu melhor uso consiste em governar a República e converter em obras as palavras que se ouvem nas escolas.

I. P. BERNARDO: Não é suficiente, na verdade, ter a virtude, por assim dizer, como uma arte, a menos que se a pratique. Ainda que uma arte não seja praticada, sua ciência pode ser mantida, porém a virtude está posta inteiramente em seu uso; no entanto, sua prática máxima está em governar a ciuitas e não no discurso perfeito nem nas coisas que aqueles proclamam pelos cantos.
[Em nota, ela explica que "aqueles" se refere às escolas sem experiência prática. A propósito, pareceram-me boas as notas, além do português, e como já está com grande parte da obra traduzida, não posso senão torcer para que a termine e publique.]

M. T. CÍCERO: Nec vero habere virtutem satis est quasi artem aliquam, nisi utare; esti ars quidem, cum ea non utare, scientia tamen ipsa teneri potest, virtus in usu sui tota posita est; usus autem eius est maximus civitate gubernatio et earum ipsarum rerum, quas isti in angulis personant, reapse, non oratione perfectio.

(VI, 10)

A. CISNEIROS: Depois de um régio banquete, continuamos conversando a noite toda, sem que aquele ancião falasse de outra coisa a não ser de Cipião, o Africano, de quem recordava não só os feitos, mas também as frases que havia ouvido. Por fim, quando nos retiramos para os nossos quartos, achei-me tão fatigado da viagem e de ter velado a noite toda, que caí logo num sono muito mais profundo do que o de ordinário costumava desfrutar.

R. COSTA:  No dia seguinte, fui recebido com a suntuosidade própria de um rei, quando alargamos a nossa conversa até o início da noite. O ancião-rei não falava de outra coisa a não ser do Africano, quando recordou todas as suas gestas e até suas palavras.

Após interromper a reunião para ir dormir, um sono mais pesado que o de costume me amparou, cansado que estava da viagem, e por ter ficado desperto durante uma boa parte da noite

M. T.CÍCERO: Post autem apparatu regio accepti sermonem in multam noctem produximus, cum senex nihil nisi de Africano loqueretur omniaque eius non facta solum, sed etiam dicta meminisset. Deinde, ut cubitum discessimus, me et de via fessum, et qui ad multam noctem vigilassem, artior, quam solebat, somnus complexus est.

Nenhum comentário:

Postar um comentário